quinta-feira, julho 01, 2004

CADA UM PENSA O QUE QUER O PENSAMENTO AINDA NÃO PAGA IMPOSTOS

Ai, Portugal...
Por JOAQUIM FIDALGO


J., chamemos-lhe assim por comodidade, tem um bom emprego e um bom ordenado. Trabalha há muitos anos, sempre por conta de outrem. Fez um curso
superior, lá foi subindo degrau a degrau, e hoje pode dizer-se que não ganha mal: cerca de 3000 euros brutos por mês, o que dá, líquidos, uns 2000
euros, ou seja, 400 contos. Não é fora de série para um quadro superior com tantos anos de carreira, mas enfim...

Há dias, J. recebeu o seu recibo de ordenado. Lá estava, como de costume: ao lado esquerdo, os tais 3000 e picos de vencimento; ao lado direito, logo
ali à cabeça, o IRS retido, 710 euros. E depois mais isto e mais aquilo, contas redondas traz para casa 2000 euros. Os tais 400 contos. Podiam ser
600, mas J. paga pontualmente os seus impostos... Nem se diga que é por ser cidadão exemplar: ele paga os impostos até porque não pode deixar de os
pagar! E lá vão assim para os cofres do Estado, certinhos, todos os meses, só de IRS os tais 710 euros, cerca de 140 contos. Todos os meses. Só de
IRS. É assim a vida, ele até não ganha mal, nem se queixa, vendo o que vai por aí.

Pouco depois, o recibo ainda fresquinho no bolso, J. compra o jornal. E lê: "Profissões liberais pagam apenas 6% de todo o IRS". Curioso, continua a
ler: "Os trabalhadores independentes - nos quais se incluem médicos, advogados e arquitectos, entre outros - pagaram de IRS uma média de 656 euros, em
2003". Como?... Só isso?... E J. põe-se a fazer contas de cabeça: quer dizer que, em 2003, os trabalhadores independentes (nos quais se incluem, por
larga fatia, os profissionais liberais) pagaram de IRS, num ano inteiro, menos do que ele, J., paga num só mês?... Parece que sim. Claro que as
estatísticas têm destas coisas: há muito independente que pagou bastante mais do que aquilo mas, em contrapartida, muitos outros nem sequer aquilo
pagaram. J., sim, pagou certinho todos os meses. E, como ele, os milhares e milhares de trabalhadores por conta de outrem, aqueles que não podem fugir
aos impostos. Aqueles que, lá dizia o jornal, são responsáveis por cerca de 70 por cento de toda a colecta de IRS. Os assalariados qu
e paguem a crise, que os independentes e liberais continuam em razoável escala, pelas mais diversas portas e janelas, a fugir às suas obrigações
fiscais. Há tanta maneira de fugir, tanta "despesa" dedutível, tanto "investimento" amortizável, e lá se chega ao fim do ano quase sem matéria
colectável, coitadinhos de tantos dos nossos profissionais liberais, é vê-los por aí rotos e esfarrapados, nos seus carrinhos económicos e
apartamentos de subúrbio...

J. volta a olhar o recibo, os 3000 euros brutos, os 710 euros de IRS cobrados à cabeça, os 2000 líquidos com que fica, e sortudo que ele é, até nem
ganha mal, de que se queixa?... Não, não se queixa. Só que, ao ler estas notícias, sente difusamente que andam a fazer dele parvo.

Mas que rica altura para pensar nestas coisas, tem lá algum jeito?!... Vamos mas é a guardar o recibo e a abalar depressa para casa, que não tarda
está a começar o jogo. Força, Portugal!
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